terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

SOU FILHO DA CIÊNCIA, SOU CRIA DE CHICO ou APENAS MAIS UM HOMEM-CARANGUEJO, MAS CARANGUEJO COM CÉREBRO

Treze anos atrás morria um dos maiores gênios da música pernambucana e brasileira, Chico Science. Francisco de Assis França, do alto de seus 30 anos, perdia a vida num acidente fatal em pleno domingo. Recordo muito bem desse dia. Eu estava assistindo um filme na Band/Tribuna, era o Risco Fatal, do Stallone, quando num plantão anunciaram o falecimento de um dos meus ídolos. Como de costume, os bons morrem cedo.
Cresci. E comigo também cresceu o fascínio por todo o Manguebeat.
Ano passado tentei seleção de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE com um projeto que abordava o Movimento Mangue como tema. Porém, eu desconhecia a fascinação de tantos futuros acadêmicos. Ignorância minha, admito. Existem aproximadamente uns 80 trabalhos sobre a referida temática. Por um lado isso é ótimo. Foi péssimo pra mim porque eu não estava inserido nos quesitos do ineditismo. Mas isso é a vida. Lamento, sobretudo, a parca divulgação (pra não dizer nenhuma) dos resultados obtidos com esses trabalhos.
Para o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Cláudio Morais de Souza:

O manguebeat enquanto fenômeno cultural é resultado da confluência de diversas experiências estéticas/sociais, de um grupo de jovens que através das músicas por eles produzidas começam a delinear uma nova situação (se não diferente), onde o campo artístico se mostra um terreno fértil na produção de uma atitude perceptiva, marcada por um lado, pela necessidade de conhecer o outro e experimentar o diferente, por outro, e ao mesmo tempo, conhecer-se e tornar-se conhecido como parte de uma sociedade marcada por um contexto urbano de forte exclusão social

O fato é que o “mundo” do manguebeat não consiste apenas de sons produzidos por uma determinada combinação de instrumentos tocados de uma forma característica, é a junção disso com a cultura ao redor, levando-se em conta todos os níveis de interpretação e heurística para a palavra “cultura”, da popular a de Raymond Willians. Sobretudo, se considerarmos o movimento mangue como elo de ligação responsável por unir elementos de manifestações (pós)modernas e globais a elementos da tradicional(ista) cultura popular pernambucana, transformando de forma categórica a realidade local e despertando a participação política da sociedade. Tal participação política é vista por alguns membros da imprensa como a força cultural responsável pela divulgação da política de “esquerda” (PT e PCdoB) que está no seu terceiro mandato consecutivo nas prefeituras de Recife e Olinda, berços do Manguebeat, assim como o Movimento Armorial era o divulgador cultural para o governo de “direita” anterior (PMDB / PSDB-DEM). Utilizando Feathestone para contextualizar o exposto:

Houve uma mudança mais geral na atitude dos governos nacionais e locais, fundações e corporações, que começaram a perceber as artes como algo socialmente útil. Em suma, o valor econômico do capital cultural aumentou; a partir da década de 60, os artistas deixaram de ser vistos como uma contracultura boêmia, incômoda e transgressora, passando a ser tratados pelos políticos, especuladores e planejadores urbanos como uma vanguarda diferente, que abriu caminho para o redesenvolvimento em larga escala de áreas urbanas baratas e decadentes, mediante a gentrification”.

O Movimento Mangue passa a existir num contexto caracterizado pela ofensiva econômica neoliberal que não contemplava as demandas sociais, abrindo espaço para o surgimento de movimentos de rebeldia e contestação. O Manguebeat vem para expor entre outras coisas a situação de exclusão social, violência e fome dos bairros de periferia de Recife através de sua arte. Utilizando expressões do historiador Eric J Hobsbawm:

A arte popular é mito e sonho, mas também é protesto, pois o comum das pessoas tem sempre alguma razão para protestar... A arte popular genuína, excepcionalmente vigorosa e resistente, realmente funciona e modifica o mundo moderno, e quais as suas conquistas e limitações”.

Contudo, como música e arte vivem da indústria cultural, o “mercado” vê na valorização do periférico, do exótico, do excêntrico, uma oportunidade de lucro. A indústria simplesmente descobre o mais lucrativo para processar e processa. É próprio da civilização uma busca de exotismos de todos os tipos. A cultura popular nos países urbanizados e industrializados há muito tempo consiste em entretenimento comercializado, padronizado e massificado, transmitido por meios de comunicação como imprensa, a televisão, o cinema, entre outros, produzindo o empobrecimento cultural e a passividade, bem como o consumo de cultura pré-fabricada. Contudo, este é um assunto que deve ser tratado com bastante delicadeza para evitar a utilização de paradigmas nacionalistas e muitas vezes preconceituosos e irresponsáveis.
Como o jornalista da Revista Continente Multicultural, Fábio Araújo, falou uma vez:

O fenômeno é recente demais para que se façam análises definitivas. Mas, além de devolver Pernambuco ao centro das atenções, resgatar a auto-estima da população e estimular um renascimento cultural que repercutiu em todo o país, o Manguebit deixou pelo menos outro legado: uma série de estudos acadêmicos, que procuram entender o que aconteceu e situar o movimento nos contextos nacional e internacional.” 

Possivelmente nunca se esgotarão as interpretações e as análises de uma temática tão rica quanto à do “movimento cultural” desenvolvido no Recife durante a década de 1990. Tal qual a Bossa Nova e a Tropicália o Manguebeat foi amplamente estudado, haja vista o número elevado de trabalhos acadêmicos sobre o tema nos últimos dez anos.
Embora o pensamento de Hobsbawm exposto a seguir tenha sido divulgado há 50 anos e relaciona-se ao Jazz norte-americano, nenhum pernambucano do final do século XX ficaria surpreso caso se deparasse com o seguinte argumento:

Nossos dias e nossa cultura são carentes de transfusões de sangue periódicas, para rejuvenescer a cansada e exaurida ou enxágue arte de classe média, ou a arte popular, que tem sua vitalidade drenada pela degeneração comercial sistemática e pela superexploração”. 

Como é sabido, o Recife e até mesmo o Brasil estavam carentes de algo que os tirassem da inércia, e tudo que os jovens do mangue desejavam eram ação. Com isso a idéia de ‘movimento’ pode ser utilizada para representar o fim de uma inércia na música recifense. E não a de “movimento” como o rock, por exemplo, com raízes e seguidores em todo o mundo e há muitos anos.
O manguebeat já foi estudado como um movimento híbrido, pós-moderno, globalizado, mundializado e dono de uma antropofagia particular, sendo esta mais específica, bem mais cosmopolita e resultado dessa tensão cultural facilitada pelo acesso à informação e às novas tecnologias, embaladas pela cultura midiática.
Essa gênese cultural do manguebeat pode ser encarada como a nítida expressão da cultura pós-moderna, haja vista o pós-modernismo ser a nova fase na cultura ocidental em decorrência da falência do Moderno, dessa forma o comportamento e a produção cultural pós-moderna revela-se como um novo patamar em relação ao racionalismo moderno. Logo, a cultura e o pensamento pós-moderno encorajam a intuição, a emoção e a diversidade, e a pós-modernidade se caracteriza pela busca pelo prazer momentâneo, rejeitando o padrão de verdade universal.

Todo a essência pós-moderna é viva em Chico. Muiito embora eu acredite que Chico nunca imaginou que sua obra fosse tão grande. Mas como ele falou certa vez: 

"Deixai que os fatos sejam fatos naturalmente/ sem que sejam forjados para acontecer/ deixai que os olhos vejam os pequenos detalhes lentamente/ deixai que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes /como móveis inofensivos/ para lhe servir quando for preciso e nunca lhe causar danos/ sejam eles morais, fisicos ou psicologicos"


Citações:

MORAIS DE SOUZA, Cláudio. Da Lama ao caos: Diversidade, diferença e identidade cultural na cena Mangue do Recife. En publicacion: Informe final del concurso: Culturas e identidades en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO, Buenos Aires, Argentina. 2001.
  
HOBSBAWN, Eric J. História Social do Jazz. Trad. Ângela Noronha. 6ª Edição Revista e Ilustrada. São Paulo: Paz e Terra, 2009. pp 42
ARAÚJO, Fabio. Os observadores da lama e do caos.   
HOBSBAWN, Eric J. op cit. pp. 33

LEÃO, A. C. C. A maravilha mutante: batuque, sampler e pop no recife dos anos 90. Dissertação de Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profa. Dra. Ângela Prysthon. Recife, 2002.



"Se o asfalto é meu amigo eu caminho como aquele grupo de caranguejos ouvindo a música dos trovões!"

4 comentários:

Unknown disse...

Bem, meu amor, não preciso comentar, na verdade acabo sendo mais fã do que uma comentarista oficial, ou uma crítica que ajuda na construção de seus novos posts. Acredito em vc e nem preciso dizer, adorei o post e sei muito bem como é seu trabalho, só não desiste de acreditar que vc ama o que faz e o lugar onde vc mora, além de continuar a valorizar sua cultura.

Fábio Coutinho disse...

Foi fantástico o movimento, o som, as letras, inovação...

Só lembro de Chico cantando;

Que som é esse que vem de PERNAMBUCO
Que som é esse que vem de PERNAMBUCO

André Raboni disse...

É cara. Ano passado escrevi uma coisa que sempre achei curiosa.

"Nas bordas do Recife surgiu essa movimentação (inicialmente arquitetada por Chico Science e os integrantes da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A), que reunia pessoas das cidades vizinhas, Olinda (Peixinhos) e Jaboatão dos Guararapes (Barra de Jangada).

Curioso detalhe, muitas vezes desapercebido: o Centro, a Cidade do Recife, foi o palco onde eclodiu a energia criativa que se produzia em seus arrabaldes. Recife foi a encruzilhada do manguebeat – a cidade onde aconteceu aquilo que se engendrava em suas vizinhanças, suas bordas."

Elyne disse...

Chico Ciência foi "O cara"!
Sem substituições...
Sem comparações...
Sem bairrismo...
Como diría Renato Russo... os bons morrem jovens.

"...Maracatu psicodélico
Capoeira da Pesada
Bumba meu rádio
Berimbau elétrico
Frevo, Samba e Cores
Cores unidas e alegria
Nada de errado em nossa etnia".

Parabéns Rafael pelo post lindo!
Amo vc...
Adoro Chico...